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Época

A paulistana Letícia Passarelli tinha 23 anos quando decidiu transformar uma necessidade em ideia de negócio. Letícia perdia muito tempo procurando estacionamentos em São Paulo. Só ao embicar o carro em cada estabelecimento descobria até que horas o local ficava aberto e quanto iria custar. Era o ano de 2013 e aplicativos como o Waze começavam a se popularizar. Letícia juntou-se a dois amigos e fundou o Let’s Park, um aplicativo que indica localização, preço e horário de funcionamento dos estacionamentos nos arredores do usuário. Em meses, conquistou milhares de usuários, o suficiente para chamar a atenção da fabricante de automóveis Ford, que adotou a tecnologia nos sistemas de GPS de seus veículos. Hoje, o serviço funciona em seis países e atrai a atenção de investidores – uma oferta está em negociação. Se Letícia morasse em San Francisco ou Boston, nos Estados Unidos, é provável que sua ideia fosse colocada em prática dentro de alguma universidade, o caminho natural para jovens estudantes com veia empreendedora. Google e Facebook são exemplos famosos. No Brasil, Letícia, que à época estudava administração numa universidade renomada do ABC paulista, preferiu recorrer à experiência da família – o pai é empresário. “Na faculdade, lembro de um único professor que nos ensinou a elaborar um plano de negócios, algo básico para quem quer empreender”, diz.

Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), nos Estados Unidos, fundado em 1861, mostra como uma universidade voltada ao empreendedorismo ajuda o país a se desenvolver (Foto: George Steinmetz/Getty Images)
O BOM EXEMPLO (Foto: Época )

Letícia e estudantes como ela motivaram um estudo recente realizado pela Endeavor, uma ONG multinacional de incentivo ao empreendedorismo, e pelo Sebrae. A pesquisa ouviu mais de 2 mil alunos e 680 professores em 70 instituições de ensino. Concluiu que faltam, nas universidades brasileiras, infraestrutura e conteúdo que capacitem jovens dispostos a criar seus próprios negócios. Para chegar à conclusão, as duas instituições elencaram quais seriam as boas práticas de uma “universidade empreendedora”, como disciplinas práticas, contato com ex-alunos que empreenderam e com potenciais investidores. O estudo mostrou que apenas 35% dos estudantes brasileiros se dizem satisfeitos com o que as universidades oferecem. Já entre os professores, 65% consideram a estrutura satisfatória – um descompasso evidente. Como uma das consequências, a universidade não é a referência para esses jovens. Assim como Letícia, 76% dos estudantes que empreendem encontram na família, e não na faculdade, a conversa útil aos negócios. A reclamação geral é que os cursos têm muita teoria e pouca prática. Pior: oferecem muita motivação e pouca orientação concreta, como estudos de casos e informação financeira e jurídica.

Letícia Passarelli,empresária.Ela recorreu ao pai para ter orientação sobre negócios (Foto: Filipe FRedondo/ÉPOCA)

A Endeavor defende que a universidade ambicione se tornar o núcleo de um ecossistema salutar de empreendedorismo inovador. Por agregar conhecimento e oferecer tempo e espaço para experiências, a universidade tem vocação para gerar negócios de alto impacto econômico e social, diferentemente daqueles voltados apenas ao autossustento ou sem proposta inovadora. O exemplo usado no estudo é do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Em 2014, havia nos Estados Unidos 30 mil empresas ativas fundadas por ex- alunos da universidade, ao longo das últimas décadas. Na época em que o levantamento foi feito, elas empregavam 4,6 milhões de pessoas. Nesse meio-tempo, a universidade também foi responsável por uma produção de ciência básica invejável e formação de profissionais de alta qualificação técnica, que foram ao mercado disputar salários em vez de criar negócios próprios. Desse modo, enfatizar o empreendedorismo não desvirtuou as outras qualidades da universidade. “O ensino está desconectado da realidade, o que dificulta o nascimento de ideias”, diz Juliano Seabra, presidente geral da Endeavor. “Impossível falar de inovação em um sistema que só olha para dentro”, diz.

A falta de disciplinas mais práticas e de professores com experiência se une à falta de ambição de boa parte dos alunos. Do pequeno grupo de estudantes entrevistados que disse empreender, apenas 4% acham que têm um produto ou serviço inédito no Brasil. Para o biólogo Fernando Reinach, doutor pela Cornell University Medical College, executivo do fundo de investimentos Pitanga e ex-empresário, não é necessário ensinar ao aluno conteúdo relacionado à abertura de empresas. Ele lembra que o MIT se dedica a formar especialistas, gente disposta a passar cinco anos mergulhada num assunto sem ter a certeza de que aquilo vai gerar lucro. O incentivo principal é criar algo novo. Isso atrai outros interessados, como potenciais investidores. Cabe à universidade orientar e ajudar a conectar os parceiros. “Quem cria algo brilhante, geralmente não teve tempo para estudar outra coisa. Nesse caso, a técnica e a capacidade criativa do aluno importam mais do que ele saber como criar uma empresa”, diz.

A troca de ideias entre universidade e empresa também beneficia a Universidade Stanford, em Palo Alto, na Califórnia, onde estudou o amazonense Gabriel Benarros, de 27 anos. Ele fundou o Ingresse, um serviço de vendas de ingressos que em 2016 deverá movimentar R$ 150 milhões. Benarros havia cursado medicina na Universidade Federal do Amazonas, mas não se encantou com o curso. Optou por estudar economia comportamental e psicologia social. Logo que chegou à universidade americana, conta que conheceu o brasileiro Mike Krieger, criador do Instagram. No ano seguinte, foi apresentado a Evan Spiegel, do fenômeno Snapchat. Ele atribui o espírito empreendedor local à flexibilidade de matérias na grade, que permite aos estudantes combinar conhecimentos de áreas diferentes, e ao contato direto com empresas, que demandam projetos à academia. “Não existe preconceito entre a academia e o mercado. Os professores falam de negócios e têm contato com negócios”, diz.

O distanciamento entre a academia e o mercado, ainda forte no Brasil, tende a perder força com a aprovação do Marco Legal da Inovação, que ocorreu no início do ano. Em meio à tempestade política que o país vivia, acabou passando despercebido. Com ele, finalmente, o professor universitário poderá ter participação acionária em negócios e mesmo assim trabalhar em uma instituição de ensino pública, algo antes proibido. Em países como Estados Unidos, Israel e Coreia do Sul, já é permitido há muito tempo. “Por anos, existiu essa tendência do acadêmico brasileiro de se fechar dentro dos muros da universidade”, diz o diretor de Engenharia do Google para a América Latina, Berthier Ribeiro-Neto, que transitou bem pela ponte entre academia e mercado. Para empreender, precisou tirar diversas licenças do cargo de professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 2005, vendeu sua empresa para o Google, tornou-se um pesquisador importante na multinacional e ajudou a colocar Belo Horizonte no mapa global da ciência de buscas na internet.  “O impacto das ideias do pesquisador na sociedade é muito maior quando ele as leva ao mercado”, diz.

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É preciso colocar esse movimento em perspectiva. Mesmo se as instituições de ensino superior do Brasil levarem o tema mais a sério e os alunos buscarem ideias mais ambiciosas, o empreendedorismo inovador ainda será pequeno dentro do universo da criação de negócios próprios. No Brasil há muito empreendedorismo porque há muito desemprego, informalidade e instabilidade. Guilherme Afif, presidente do Sebrae, alerta que a maioria das microempresas no Brasil se destina apenas ao sustento de seus fundadores, sem expectativa de crescimento. Ao formar jovens apenas para buscar trabalho assalariado, a universidade não contribui para que esse quadro mude. Afif defende que a universidade se esforce para levar seu conhecimento ao empreendedorismo comum, mesmo que sem grandes ambições inovadoras – ao bar ou consultório que o estudante queira abrir. Esse primeiro passo já inspiraria mais jovens a tentar criar seus negócios. E a confiar mais nos professores para conversar a respeito.

O empreendedorismo nas universidades brasileiras (Foto: Época )